A covid-19 e, agora, a guerra entre Rússia e Ucrânia adicionaram incertezas sobre dúvidas que já eram colocadas a respeito das cadeias globais de suprimentos e da globalização. Para além da eficiência e da produtividade, novos elementos devem entrar na conta das escolhas produtivas, o que é válido, mas o risco é os países se voltarem exclusivamente para dentro, tentando recompor domesticamente suas cadeias e recorrendo a políticas protecionistas que ampliam custos e desigualdades.
Essas são as avaliações gerais de Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central (BC) e sócio-fundador da Gávea Investimentos, e de Sandra Rios, diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes) e sócia da Ecostrat Consultores. Eles participaram nesta terça-feira da Live do Valor, no âmbito da programação comemorativa de 22 anos do jornal.
Com a pandemia e o conflito no Leste Europeu, Arminio, que sempre foi defensor de uma integração maior do Brasil à economia global, diz que “questões estratégias” apareceram de forma mais concreta. “Sempre que eu ouvia a palavra ‘isso é estratégico’, já começava a me coçar, pensando que tinha um pedido para alguma coisa que não fazia sentido. Mas agora, faz”, diz ele, citando como exemplo a “corrida” por medicamentos e artigos de saúde durante a pandemia. “Agora acho que, de fato, existe uma justificativa mais concreta para se repensar as cadeias de suprimentos”, afirma. Para o economista, ficou claro que “a integração acelerada do mundo estressa muito a vida” das pessoas e que “isso precisa ser administrado para que seja sustentável”.
Sandra concorda que, já desde a crise financeira de 2008, existe um ambiente mostrando que o direcionamento da produção pela eficiência e produtividade não pode ser o único vetor. “Acho que a gente vai para uma situação em que é preciso levar em consideração outros elementos”, diz ela. Do ponto de vista das empresas, esses “elementos essenciais” incluem, por exemplo, a diversificação de fornecedores.
O risco, no entanto, é que os países optem pela “resposta mais fácil” de tentar recompor domesticamente suas cadeias de produção, o que costuma receber o apoio de grupos de interesse, alerta Sandra. Isso, segundo ela, teria uma impacto adicional “bastante negativo” sobre uma conjuntura que já é adversa. “Aumenta custo, preço, empobrece as pessoas, particularmente em países de economia média, como o Brasil, que ainda estão pouco integrados”, diz. “Essa é a pior resposta possível.”
Segundo Sandra, é importante que os países mapeiem o que é essencial para a manutenção da sua economia e produção, o que não tem alternativa para cooperação internacional e, em alguns casos específicos, o governo até pode pensar em como organizar e articular o ambiente econômico para favorecer a produção de certos produtos, diz ela.
Ela cita como exemplo nesse processo de reflexão o caso dos fertilizantes, que são insumo essencial para uma economia produtora agrícola como a brasileira. “A gente importa 85% dos nossos fertilizantes, mas a concentração não é tão grande assim, a Rússia responde por 25%, a China vem com 17%, mais ou menos, e temos Bielorússia, Canadá, Marrocos, Israel, tem outros fornecedores para trabalhar. Faz sentido o Brasil colocar muitas fichas na produção doméstica de fertilizantes? Podemos pensar isso para o futuro, mas não é solução nem para esse ano nem para o ano que vem”, afirma.
A diversificação das importações pode ocorrer quase de forma obrigatória no caso das importações de fertilizantes da Rússia em meio à guerra, acrescenta Arminio. Uma questão, porém, é que, em situações do tipo, acaba surgindo um certo espaço para “um vírus oportunista”, como ele chama, de proteção e subsídios. “Aí, é para acender uma luz vermelha tripla”, afirma economista.
Para Sandra, o que cabe aos governos é criar o ambiente adequado para que as empresas possam fazer as melhores escolhas, trabalhando mais na coordenação de expectativas, de informação e na “limpeza” do ambiente econômico. “São as empresas que podem escolher a melhor estratégia de como diversificar fornecedores, garantir que haja certa resiliência nas suas estruturas produtivas, buscando fornecimento onde é mais barato, eficiente, sem concentrar excessivamente sua cadeia, para mitigar os riscos”, afirma. “Acho um perigo, embora haja uma tendência forte, de que a gente volte para essa ideia de subsídios, de uma política industrial muito ativa, com o governo entrando de sócio na produção ou no investimento para a instalação de plantas novas.”
A pandemia, a guerra na Ucrânia e o novo surto de covid na China são exemplos do grau de incerteza com que se convive, reconhece Sandra. “O que a gente sabe é que, para esse ano, tem uma redução significativa do crescimento mundial, com impactos muito importantes sobre o comércio e a governança econômica internacional”, diz ela. A esses exemplos, Arminio acrescenta o que chama de “Guerra Fria 2.0”, em referência aos atritos entre EUA e China. “Quando dois gigantes se desentendem, as estratégias das empresas, sobretudo, mudam radicalmente”, afirma ele, que também se diz preocupado com a tendência de crescimento do populismo no mundo político.
Para o longo prazo, voltar a ter crescimento em um ambiente com preços mais controlados vai depender, segundo Sandra, dessas escolhas políticas dos países. “Se a gente vai para esse mundo mais concentrado em grande blocos econômico e políticos, se esse vai ter a volta de políticas industriais, protecionismo, a fragmentação do comércio de bens e da tecnologia, tudo isso é mais custo e menos crescimento. As empresas vão ajustar suas estratégias em função das escolhas que os países fizerem”, afirma.