Da Kombi para a Casa: um pequeno registro do que estamos construindo

Uma velha piada do movimento liberal brasileiro, ainda no remoto tempo do Orkut, era de que se juntássemos todos os liberais deste país com coragem de afirmar o amor à liberdade com todas as letras, teríamos no máximo uma Kombi. Era um período de hegemonia do PT, Lula desfrutava de uma explosão de popularidade e o discurso populista da época definia os grandes inimigos imaginários do povo como “neoliberais entreguistas da elite, que não suportam ver pobres andando de avião”. Falar em Liberalismo soava como um palavrão. Coisa de gente anti-social e anti-pobre.

Quando olhamos pra história do pensamento político no Brasil, não faltam exemplos de grandes liberais munidos de sensibilidade social que lutaram pelos mais pobres. São nomes que nos inspiram e servem de referência, mas a verdade é que a maioria deles eram homens e mulheres de pensamento, com excelente formação, enquanto a falta de acesso à educação de qualidade era a regra. Nas últimas décadas, os grandes liberais de ação criaram as bases do Brasil moderno implementando transformações estruturantes como o Plano Real e o Bolsa Família. Como efeito, milhões de brasileiros deixaram a pobreza. Sem a asfixia da hiperinflação, foi possível começar a sonhar e planejar o próprio futuro. Foi possível vislumbrar o significado de ter liberdade para construir a própria vida. E então vivemos um ciclo de esperanças transformadoras.

As privatizações inauguraram um novo padrão de cidadania. Comunidades inteiras foram literalmente retiradas do breu com a universalização do acesso à energia elétrica – lembro até hoje da festa que fizemos para comemorar a chegada do fornecimento de eletricidade no sítio em que a minha avó nasceu, no pequeno município de Panelas, agreste de Pernambuco. Telefones deixaram de ser artigos de luxo declarados em imposto de renda e em poucos anos nos transformamos em um país onde existem mais smartphones do que habitantes. Com a venda da Embraer, a terra de Santos Dumont passou a ter uma empresa que fabrica aviões para o mundo todo, ajudando a nos inserir numa nova economia globalizada.

No entanto, essas transformações sociais não foram acompanhadas de representação no debate ideológico. No campo da disputa política, as ideias liberais continuaram sendo caluniadas, tratadas como inimigas da nação e o pior de tudo: para contrapor esses ataques, não havia qualquer tentativa consistente de esboçar uma defesa. Os ataques às reformas foram respondidos com uma jaqueta repleta de logos de empresas estatais, símbolos maiores do status quo do atraso, da ineficiência e do patrimonialismo. Foi assim que o sucesso retumbante do mais bem sucedido processo de privatizações do país foi capturado por uma narrativa covarde e mentirosa de privataria. O resultado efetivo de aumento da qualidade de vida das pessoas por meio da eficiência dos serviços foi sequestrado, no imaginário público, por uma especulação leviana de roubalheira. No ambiente em que isso é possível, a piada soava realista: os liberais brasileiros não enchiam uma Kombi.

Quando os efeitos do desastre das políticas populistas do PT explodiram em forma de recessão, desemprego e aumento da inflação, as mentiras sobre o liberalismo já não eram mais aceitas da mesma forma. Numa construção emergente, de baixo para cima, a partir de pequenas iniciativas isoladas de grupos de estudo que aos poucos foram se conectando através das redes sociais e de novas organizações, os movimentos liberais começaram a conquistar alguma relevância entre formadores de opinião.

Do debate de ideias, partimos para uma tentativa ousada de inovação política: incubados no PSL, criamos o Livres. Seríamos um partido liberal orgânico, com bases vibrantes e democracia interna, experimentando um modelo de governança nativo do século XXI. Até que surgiu a filiação de Bolsonaro e o resto é história. Apesar do alerta contundente dos liberais por inteiro, o povo se iludiu novamente e elegeu um populista de direita. O resultado desse desastre todos nós ainda estamos vivendo.

Nesse contexto é que entra a parte mais extraordinária dessa história. Ao longo dos últimos 4 anos, nossa teimosia de amor à liberdade não apenas não deixou que o Livres morresse, como o fez reencarnar muito mais forte e cada vez mais relevante.

Como movimento suprapartidário e associação civil, consolidamos a nossa atuação como pólo aglutinador entre o mundo teórico das ideias e o mundo prático da política. Somos o ponto de encontro entre os movimentos e ativistas liberais da sociedade civil e o debate institucional das políticas públicas. Com mais de 4 mil associados espalhados em todas as regiões do país, 21 núcleos estaduais ativos e 17 núcleos setoriais temáticos, temos furado bolhas cultivando valores de liberdade, tolerância e empreendedorismo.

Desde a campanha abolicionista, o liberalismo jamais voltou a ter presença articulada e relevante em todos os estratos da sociedade brasileira. Ainda não podemos afirmar que já alcançamos esse objetivo, mas podemos nos orgulhar com o fato de que essa é a dimensão do que estamos construindo.

Essa é a construção que nos levou a despertar o espírito liberal de João Victor, jovem liderança de Xexéu, pequeno município da Zona da Mata pernambucana, região marcada pelas cicatrizes dos engenhos de cana de açúcar, símbolos da sociedade escravista do século XIX.

Essa é a construção que move a atuação política de Fabio Ostermann, nosso cofundador, em defesa da liberdade pelos recantos do Rio Grande do Sul.

Essa é a construção que também move, na outra ponta do país, o vereador Emerson Jarude, em Rio Branco, hoje pré-candidato ao governo do Acre – assim como seus colegas Pedro Cunha Lima, pré-candidato ao governo da Paraíba; Felipe Rigoni, pré-candidato ao governo do Espírito Santo; e Vinicius Poit, pré-candidato ao governo de São Paulo.

Essa é a construção que nos levou aos tribunais, em defesa da democracia liberal e da integridade do nosso processo eleitoral, contra as acusações levianas de fraude de Jair Bolsonaro. Que nos levou a interceder junto ao Ministério da Saúde pelo fim da discriminação contra pessoas LGBTIA+ que, pela simples condição de sua sexualidade, eram impedidas de realizar um gesto do mais puro amor ao próximo: a doação de sangue. E nos levou ao sucesso na aprovação do novo marco do saneamento básico, para livrar milhões de brasileiros das doenças e sequelas da convivência com o esgoto não tratado. Ou a defesa da liberdade de escolha dos milhares de motoristas e milhões de usuários de aplicativos de transporte, garantida por decisão unânime do STF a partir de ação da nossa autoria.

Sem falar nas diversas iniciativas em defesa do império da lei, dos direitos humanos, do respeito à propriedade privada, pela redução da burocracia, pelo combate aos privilégios, pela facilitação da vida de quem trabalha para gerar emprego, renda e prosperidade. Ou dos mais de 600 jovens brasileiros que, com a nossa ajuda, se viram livres da absurda e anacrônica obrigatoriedade do serviço militar, através do nosso projeto de apoio aos objetores de consciência.

Toda essa construção é guiada por um sonho. O sonho de construirmos um país realmente livre, onde cada ser humano tenha a oportunidade de desenvolver ao máximo o seu potencial, de acordo com o seu próprio estilo de vida, e onde o lugar de cada um seja definido por suas próprias escolhas, não pela condição herdada da sua família, na velha loteria da vida. Esse sonho e essa construção são o que nos levaram da realidade da Kombi da antiga piada para o novo marco de crescimento em que chegamos agora: a Casa Livres, a Casa do liberalismo brasileiro, que foi inaugurada com a nossa 2ª Assembleia Geral de Associados, nos dias 5 e 6 de fevereiro.

A Casa Livres em breve ganhará um novo nome, em homenagem a algum grande liberal brasileiro da história. Mas ela já tem espírito, construção e sonho. E se os sonhos não envelhecem, como diz a música, posso dizer que para quem viveu a Kombi, essa Casa é uma construção que renova, no espírito, a ousadia que aprendemos com Victor Hugo: “Não há nada como o sonho para criar o futuro”.


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